Em pouco mais de 100 dias de mandato, Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia (CE), deu mais sinais de perceber a gravidade da actual situação económica europeia do que o seu antecessor, Durão Barroso, durante os 10 anos em que ocupou o cargo.
Ainda que não seja
justo assacar a Barroso a culpa de tudo o que correu mal, a verdade é que,
enquanto presidente da instituição central da União Europeia (UE), teve um
papel preponderante no rumo desastroso dos acontecimentos.
O seu posicionamento
entre a inacção e a submissão aos governos da UE conduziu, na prática, a CE a
demitir-se da sua missão institucional no centro dos equilíbrios europeus. O poder
passou da esfera comunitária para a esfera intergovernamental, o que equivaleu
a aceitar a preponderância desmedida da Alemanha.
Hoje persiste a
dúvida sobre as determinantes da sua atitude: falta de coragem (ou de capacidade)
para se distanciar do poder de certos Estados, ou convergência ideológica total
com a agenda dominante? Porventura um misto das duas, embora diversos sintomas
militem a favor da última. De facto, a convicção com que o ex-presidente aderiu
e aplicou o discurso sancionatório do Norte levou o insuspeito Financial Times a
considerá-lo "um dos mais ferverosos defensores da consolidação orçamental"
(15/03/2013).
Politicamente,
Barroso não teve o cuidado de contrapor a agenda da CE à dos Estados,
reequilibrando-a, antes converteu a sua instituição no instrumento operacional
e tecnicamente legitimador da austeridade imposta aos cidadãos: em Portugal, em
finais de 2013, ainda insistia em que estaria “o caldo entornado” caso faltasse
determinação para cumprir o programa de ajustamento (Público, 6/10/2013).
Na Grécia, depois
das duas eleições de 2012 (em que o Syriza não formou Governo por muito pouco),
Barroso exigia "resultados, resultados, resultados" (FT e Les Echos,
27/07/2012).
Só o carácter ideológico
destas opções pode justificar a incapacidade de perceber, ou querer perceber, a
gravidade do que estava em causa. Nem sequer ao nível do discurso houve o cuidado
de manter objectivos mínimos de coesão na trajectória cada vez mais divergente
dos países mais vulneráveis, ou de reconhecer o sofrimento real provocado nos
países em ajustamento, a começar pelo seu.
Esta atitude
resultou na agudização da clivagem entre Estados membros credores e devedores e
entre o centro e a periferia, a par do agravamento de um sentimento de
injustiça, desconfiança, revolta e rejeição da Europa, sobretudo nos países sob
pressão. Muito por essa razão, o projeto europeu está hoje no fio da navalha.
À medida que a
situação económica e social na Europa se degradava, e que as metas do
ajustamento ficavam comprometidas, o presidente da CE delegava a responsabilidade
da concepção e acompanhamento dos programas de ajustamento em Olli Rehn, o
ultra-ortodoxo comissário finlandês e principal responsável da Troika.
Quando
as críticas começaram a crescer, Barroso defendeu-se de duas formas. Primeiro,
invocando a concordância dos governos dos países sob ajustamento com as medidas
impostas - uma "concordância" bem ilustrada pelas "negociações"
actuais com a Grécia. Depois, apontando a responsabilidade aos governos do euro:
“Todos os programas para países vulneráveis foram aprovados por unanimidade.
Foram os países que tomaram a decisão." (Jornal de Negócios, 26/05/2014).
Não
obstante, é a Troika, e dentro dela a CE - numa mal definida partilha de
responsabilidades com o Fundo Monetário Internacional (FMI) -, quem fixa as
metas de redução dos défices e aprova as medidas correspondentes. O Eurogrupo, formalmente responsável pelos programas, não
tem capacidade técnica própria de análise e tem, assim, de se apoiar na CE,
como tem sido repetidamente reconhecido pelo seu presidente, o insuspeito
ministro holandês das finanças, Jeroen Dijsselbloem.
Nem
os evidentes erros técnicos cometidos pela Troika, assumidos logo em Outubro de
2012 pelo economista chefe do FMI, Olivier Blanchard - ao reconhecer que os
efeitos da austeridade no crescimento
económico da Grécia tinham sido seriamente subestimados -, convenceram a CE a
mudar de rumo. Pelo contrário: o debate sobre os multiplicadores orçamentais
"não tem sido útil e pode afectar a confiança que conseguimos construir a
muito custo nos últimos anos", protestou Rehn em carta de 13/02/2013 aos
responsáveis da Troika.
No
plano técnico, a CE também não convenceu. Segundo o FMI, "... ao
focalizar as suas reformas mais no cumprimento das normas da UE do que no seu
impacto no crescimento, a CE não foi capaz de contribuir muito para identificar
as reformas estruturais potenciadoras de crescimento". Também "não
tinha experiência de gestão de crises" (http://www.imf.org/external/pubs/ft/scr/2013/cr13156.pdf).
Porventura a única
referência pública de Barroso aos limites da austeridade - embora sem
qualquer autocrítica - em Abril de 2013, além de absolutamente inusitada,
pareceu tardia, pouco sincera e eventualmente determinada por preocupações eleitorais
e de imagem: “Mesmo se penso que esta política é fundamentalmente correcta,
penso que atingiu os limites. Para uma política ser bem sucedida, não tem de
ser apenas correctamente desenhada, tem de ter um apoio político e social
mínimo” (Público, 23/04/2013).
É por tudo isto que,
apenas 100 dias passados desde a sua investidura, as declarações e acções de
Juncker justificam a esperança de que a CE, tão essencial à Europa que conhecíamos,
não terá afinal desaparecido para sempre: é o caso da prioridade que colocou na
redinamização do investimento, da aplicação da flexibilidade do Pacto de Estabilidade
a França e Itália ou dos esforços para retirar a Grécia do ring onde é zurzida pelos
credores, proporcionando-lhe um espaço de verdadeira negociação. Ou, ainda, do seu
reconhecimento dos erros da Troika: "Pecámos contra a
dignidade dos povos na Grécia, em Portugal e por vezes na Irlanda", afirmou
Juncker, que criticou ainda o tipo de reformas que têm sido impostas aos
Estados. "São precisas reformas estruturais que aumentem o potencial de
crescimento na Europa, mas limitarmo-nos a chamar-lhes reformas estruturais não
significa que mereçam esse nome. (...) Precisamos de definir exatamente as
reformas estrutrurais de que estamos a falar".
Para o comum dos cidadãos,
tudo isto pode ser tardio e insuficiente. Talvez seja. Mas, para quem
acompanhou de perto os dez anos da CE de Barroso, estes novos gestos são politicamente
corajosos e geradores de esperança.
(Artigo publicado no Público de 22/03/2015)
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