Opinião
Virtudes de uma visão quase
dantesca
Por Elisa Ferreira
22/02/2015 - 10:51
Um acordo,
provisório, entre a zona euro (ZE) e o novo Governo da Grécia sobre o programa
de ajuda externa ao país foi finalmente alcançado, a muito custo, sem o qual
estaríamos à beira de mais uma brutal convulsão na ZE e na União Europeia (UE),
com consequências económicas, sociais e políticas impossíveis de antecipar.
Houve algumas
virtudes no penoso processo de negociação a que assistimos: a primeira foi a de
que caiu o véu que encobre o nebuloso processo de tomada de decisões europeias.
A Grécia não esteve a dialogar com a Comissão Europeia, com o Conselho de
ministros da UE ou com o Eurogrupo: esteve e está sobretudo a dialogar com a
Alemanha.
Desde a crise
internacional de 2008 que a UE se passeia na borda do abismo. Passados sete
anos – com gravíssimos sinais de instabilidade nas suas fronteiras a leste e a
sul, com mais desempregados do que muitos dos seus países membros têm de
população, com metade das suas economias enterradas em recessão e deflação e a
Alemanha a produzir os maiores excedentes de toda a sua história – nada parece
alterar o estilo nem os métodos de decisão. O tom violento utilizado nos
últimos dias por alguns ministros das Finanças da ZE, que chegaram a mandar o
Governo grego para casa refletir melhor, é uma caricatura tão grosseira quanto
chocante do que é a Europa hoje.
É suposto o Syriza
ser o lado “radical” desta estranha história. Mas, ouvindo as declarações do
seu ministro das Finanças Yanis Varoufakis, por um lado, e as do seu homólogo
alemão Wolfgang Schäuble, por outro, ninguém diria que o radicalismo está do
lado grego. De facto, após uma entrada inicial em funções reportada como de
ruptura, o Governo grego baixou de tom e desdobrou-se em gestos de aproximação
ao Eurogrupo, garantindo o pagamento da dívida e reformas estruturais, embora
exigindo que não voltasse a ser-lhe imposta uma agenda recessiva que impedisse
o país de pagar a dívida e perpetuasse a grave crise social. Radical?
Onde estiveram os
governos socialistas enquanto força política alternativa? Talvez tenham sido
mais activos do que pareceu, mas também pareceu que alguns dos seus ministros
das Finanças não quiseram arriscar distanciar-se da Alemanha de Schäuble.
Onde estiveram,
também, os países que podiam testemunhar sobre a violência e ineficácia da
austeridade imposta pela troika (de credores)? É que o falhanço da troika
não aconteceu só na Grécia. Em Portugal, o discurso intransigente tornou-se
para o Governo a única saída possível, porque reconhecer os erros cometidos na
Grécia equivaleria a ter de admitir que, também em Portugal, havia uma
alternativa à receita da troika e que “ter ido para além dela” pode ter
sido um grave erro. É chocante ver a ministra das Finanças a ser passeada pela
Alemanha enquanto prova de que a austeridade funcionou porque o custo da dívida
baixou - apesar de tal se ter ficado a dever a Mario Draghi, presidente do
Banco Central Europeu – e que a recessão e o desemprego não contam!
Uma segunda
virtude deste processo foi o regresso da Comissão Europeia às negociações,
ainda não a liderá-las, é certo, mas pelo menos a enquadrá-las sem uma colagem
total à Alemanha. A verdadeira agenda de compromisso estava desde o início na
proposta do comissário (socialista) Pierre Moscovici, que Varoufakis aceitou
subscrever, mas que foi retirada pela ZE. Segundo, porque em contraste absoluto
com a Comissão Barroso, Juncker fez o mea culpa essencial ao reequilíbrio
político da agenda europeia, ao abordar criticamente o método e o conteúdo das
políticas impostas pela troika. Foram palavras sérias, decentes e
necessárias.
Uma terceira
virtude é que se tornou finalmente evidente que os problemas que a Grécia
enfrenta não dizem apenas respeito aos gregos mas à totalidade da ZE, que terá
de ser corresponsável pela sua resolução, da mesma forma que contribuiu para o
seu agravamento. Porque o que se convencionou chamar "crise das dívidas
soberanas" esteve intimamente associado a uma crise financeira (e
bancária). E se a Grécia, tal como outros países periféricos, se endividou para
lá do razoável, também houve bancos que concederam e promoveram agressivamente
esse endividamento.
Convém aliás
lembrar à opinião pública da Alemanha e dos outros países “austeritários” que
parte substancial dos dois resgates gregos – 240 mil milhões de euros – serviu
para reembolsar dívida contraída junto dos bancos da Europa mais a norte. Os
gregos estão assim em parte a pagar o salvamento dos bancos alemães e franceses
- e a integridade da ZE - por via de uma austeridade punitiva que provocou uma
perda de riqueza de 25% em 5 anos, a explosão do desemprego para 25% da
população activa – incluindo metade dos jovens –, o agravamento da pobreza e
uma verdadeira crise social.
Apesar disso,
continuamos a ouvir que os gregos não fizeram qualquer ajustamento quando,
entre 2009 e 2014, passaram de um défice orçamental primário (sem os juros da
dívida) superior a 10% do PIB para um excedente de 1,7% - ou seja, passaram a
viver "dentro das suas possibilidades", segundo uma expressão cara
aos alemães. O que é caricato, em contrapartida, é que as reformas estruturais
que são agora consideradas essenciais são as mesmas que já o eram há 5 anos:
que reformas estruturais impôs afinal a troika aos gregos?
O agravamento
permanente da dívida pública que acompanhou a austeridade exige uma discussão
séria na ZE. As soluções técnicas existem e devem ser debatidas com boa fé. A proposta
grega de ligar o reembolso da dívida ao crescimento económico faz sentido e
deve ser devidamente ponderada.
Uma última virtude
de todo este processo é que está finalmente aberta uma brecha irreparável no
monolitismo que tem imperado na agenda europeia. A Grécia conseguiu que o
diálogo passe a ser feito com os pares europeus e não com os funcionários da troika;
conseguiu que se deixe de falar do conceito aberrante de “austeridade
expansionista”; conseguiu abalar seriamente a troika tanto em termos de
credibilidade técnica como em termos de estrutura; e conseguiu ainda que
discussões sobre o reembolso da dívida ou sobre o conceito de “reformas
estruturais” se desenrolem “fora da caixa” em que estiveram encerradas até
agora.
Terá a Comissão
Juncker a força necessária para trazer agora para a agenda política europeia
tudo o que falta hoje na arquitetura da ZE? Será que do sofrimento dos gregos e
da visão arrepiante deste processo negocial algo de bom pode nascer para o
futuro da Europa? Esperemos que sim porque este rei está tão obviamente nu que
urge vesti-lo…