Sunday 19 June 2016

12 anos no Parlamento Europeu chegam agora ao fim: balanços e reflexões

12 anos de trabalho enquanto deputada no Parlamento Europeu terminam amanhã, dia em que assumo um novo desafio no Banco de Portugal. É hora de fazer um balanço sobre este percurso que iniciei em 2004 e deixar algumas reflexões para o futuro.
Nenhum balanço poderá ser desligado do período absolutamente excecional que a UE tem vivido ao enfrentar a maior crise económica da sua História que é hoje considerada ainda mais grave do que a Grande Depressão dos anos 1930.
Ao longo destes anos, o PE cresceu muito em responsabilidade, influência e protagonismo. Dentro do PE, a Comissão dos Assuntos Económicos e Monetários (ECON), que integrei desde que fui eleita eurodeputada pela primeira vez em 2004, foi absolutamente central: foi aí que foram trabalhados todos os textos legislativos de reação à crise que determinam, e determinarão, o que a UE é hoje e será no futuro.
Antes mesmo da crise já tínhamos aprovado na ECON uma série de textos legislativos para a regulação e supervisão dos mercados financeiros porque, como se veio a confirmar – com grandes custos para todos nós – a suposta auto-regulação do setor não existe.
Durante a crise, desenvolvemos na ECON todas as tentativas possíveis ao nível político para estimular o relançamento europeu, apesar de esta ser uma área de competência dos Governos dos Estados membros da UE.
O papel do PE foi bem mais incisivo e mais claro na revisão do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) enquanto co-legislador dos textos legislativos mais conhecidos por Six Pack e  Two Pack. O mesmo aconteceu com o enorme pacote legislativo relativo à União Bancária que é, de facto, um complemento e um prolongamento da União Económica e Monetária (UEM).
Na ECON fui quase sempre a coordenadora – ou porta-voz - das posições dos deputados do Grupo dos Socialistas e Democratas europeus (S&D), o segundo maior do PE, por eleição dos meus pares.
Neste papel, coube-me antes de mais negociar e construir consensos entre as posições dos membros do S&D – que podem ser muito diferentes consoante o país de origem cada deputado – e, em paralelo, com os meus homólogos dos outros grupos parlamentares.
O facto de ter sido coordenadora do segundo maior grupo do PE, e de ter sido igualmente “relatora” (responsável pela negociação de vários textos legislativos dentro do PE e com o Conselho de Ministros da UE) ou relatora-sombra (representante dos socialistas na negociações internas no PE), permitiu-me participar na génese, nas negociações e nas decisões finais de todos os grandes textos legislativos aprovados ao longo destes anos.
Nestes dois papéis de coordenadora e de relatora sinto-me naturalmente co-responsável pelo que correu bem mas também pelo que correu mal.
Mesmo se tenho a satisfação de constatar que nós, socialistas, estivemos quase sempre do lado certo da barricada, a verdade é que o nosso papel, enquanto segundo grupo num PE em que a direita continua a predominar, foi sobretudo o de matizar e limitar os erros maiores ou mais graves da agenda dominante que e muito mais ideológica do que técnica ou científica.
Trabalhei pessoalmente até aos limites do que me era física e politicamente possível, participando em todo o processo da revisão do PEC em que se apontavam já algumas das dimensões de combate à agenda excessivamente austeritária imposta nos países mais frágeis e mais afectados pela especulação financeira.
Foi um processo legislativo absolutamente fundamental. Sem termos conseguido alcançar todos os nossos objetivos – tornar a governação económica efetivamente inteligente - conseguimos ainda assim introduzir alguns elementos de flexibilidade na aplicação do PEC que a Comissão Europeia tem vindo a utilizar.
Questionámos em permanência a agenda da austeridade imposta pela troika e mesmo a própria estrutura da troika, exigindo em permanência uma prestação regular de contas à CE, ao Eurogrupo, ao FMI e ao BCE.
Foi sem qualquer dúvida um período muito interessante mas também muito doloroso e penoso porque, limitados pelo nosso peso político de então, tivemos de conviver com uma agenda que não era de todo a nossa para a Europa.
Em 2011 - ano do arranque do programa de ajustamento em Portugal – e porque já questionávamos muito fortemente a qualidade das recomendações que estavam a ser feitas à Grécia, integrei uma “troika alternativa de contestação à agenda austeritária da troika oficial que se deslocou a Atenas precisamente para perceber no terreno os erros que estavam a ser cometidos.
Infelizmente, as nossas críticas estavam corretas: a lógica da austeridade assumida e imposta em toda a Europa sem qualquer mecanismo de reequilíbrio gerou uma recessão generalizada.
Apesar de a legislação do Six Pack prever explicitamente, no capítulo dos  desequilíbrios macroeconómicos, que os países com excedentes devem utilizá-los para dar energia e oxigénio à economia, ninguém, nem mesmo a Comissão Europeia, conseguiu impor o cumprimento desta regra.
Foram criados também alguns mecanismos que sem serem um orçamento europeu, poderão vir a constituir o seu embrião, como o Mecanismo Europeu de Estabilidade (ESM).
Também acompanhámos de perto, apoiámos e incitámos o BCE a agir no limite do seu mandato com as intervenções sobre a dívida soberana que permitiram, finalmente, acalmar a especulação.
No fim de todo este processo penso que houve passos na direção certa. Mas não chegam.
Enquanto grande teste à união monetária, a crise teve pelo menos o grande mérito de exibir as lacunas e fragilidades que persistem na arquitetura da UEM e que precisam de ser rapidamente corrigidas, sob pena de todo o projeto ficar ameaçado de desmoronar.
É preciso, e espero que assim aconteça, que o impulso que começou a ser dado em 2012, e que se consolidou nalguns textos importantes de referência, prossiga de forma a permitir corrigir estas lacunas.
Originalmente a União Monetária era um projeto mais completo do que aquele que acabou por ser construído e permanece assim hoje incompleta em várias dimensões, nomeadamente no que se refere à construção progressiva, tal como previsto, de um orçamento específico para a UEM  para servir como mecanismo de relançamento económico e de estímulo à economia em caso de grande crise num ou mais países e de promoção da convergência estrutural. Por muito que a teoria neo-clássica dissesse o contrário não há nenhuma mão invisível que crie esta convergência. Pelo contrário, as disparidades aumentam permanentemente num clima de concorrência perfeita e onde muitos dos instrumentos de estabilização ficam por definição anulados.
Sempre soubemos que havia um sério risco em avançar para uma União Monetária entre economias tão diferentes. Mas tínhamos uma promessa de que os objetivos da competitividade e da coesão seriam as duas faces da mesma moeda e que se manteriam enquanto objetivos estáveis.
Tínhamos também a promessa política de que aquilo que se fosse notando que faltava ou que se desviasse do rumo da competitividade e da coesão, e que precisasse de ser completado no processo de construção ou de funcionamento da Moeda Única, o seria. Todo o edifício foi construído na base de uma vontade política de fazer dele um projeto de sucesso.
Ora a partir de determinado momento, com o alargamento da UE aos países de Leste e com a globalização - elementos que não estavam previstos - a vontade política para corrigir o que não estava a dar os resultados previstos ou para completar o que estava em falta, deixou de existir sobretudo por parte de quem estava beneficiar individualmente com a situação.
O problema é que se este projeto não for rapidamente revisitado e completado, poderá transformar-se num enorme insucesso.
Uma outra dimensão em que trabalhámos em profundidade na ECON foi a da regulação e supervisão dos mercados financeiros e da constituição das peças legislativas e da arquitetura institucional do projeto da União Bancária.
Antes disso, já tinha participado nos combates anteriores à crise, em 2006, sobre os riscos sistémicos que lhe estavam associados. Aqui, os socialistas anteciparam-se com uma quantidade de iniciativas, por exemplo sobre os riscos sistémicos dos hedge funds e private equity, ou seja, produtos financeiros de transparência praticamente inexistente. Na altura a ideia dominante era a de que os mercados financeiros se auto-regulariam por exemplo com códigos de conduta. A realidade foi outra, como vimos, com a acumulação de riscos a vários níveis e sem qualquer controle que esteve na origem do rebentar da grande bolha dos mercados financeiros e do sector imobiliário. As consequências são bem conhecidas...
Sem regulação e supervisão adequadas por parte dos supervisores nacionais, os mercados financeiros explodiram com a globalização.
Em 2008/2009, com a realidade a contestar a teoria predominante da auto-regulação, houve uma mudança súbita de agenda. A ECON esteve no centro de todos os textos legislativos ou quase todos - do lado europeu - para regular e supervisionar os mercados europeus. MIFID, MIFIR, EMIR, CRD3, CRD4, são apenas alguns exemplos de um vasto conjunto de novas normas destinadas a limitar os riscos nos mercados financeiros.
Dentro deste grande corpo da regulação e supervisão, a União Bancária ganhou uma aceleração específica, tornando-se no projeto talvez mais emblemático, mais importante e possivelmente mais consensual em termos políticos que era preciso desenvolver para reforçar a União Económica e Monetária.
Seria muito importante que não acontecesse relativamente à União Bancária aquilo que parece ter acontecido com a UEM, ou seja, que se complete a parte em que os Estados aceitam delegar para o nível europeu, num enorme acto de confiança, responsabilidades vitais de supervisão e dos processos de resolução de bancos, sem que o nível europeu assuma por seu lado as garantias de estabilidade que que são a contrapartida da delegação de competências.
O projeto está incompleto e precisa por isso de ser acompanhado, monitorizado e afinado com o maior cuidado de forma a gerar os resultados pretendidos e não outros diferentes. E o resultado que se pretende é, por um lado, que os contribuintes não sejam forçados a funcionar como acionistas suportando as perdas dos bancos em tempos de crise, quando ficam ausentes do processo em período de boom económico quando os bancos distribuem lucros pelos seus acionistas.
Houve aqui uma estratégia de reequilíbrio entre bailout e bail-in, que está essencialmente expressa na legislação mais conhecida por BRRD e na nova arquitetura de constituição de um fundo comum de resolução financiado pelos bancos para ser utilizado em caso de crise e de um sistema também comum de supervisão.
A BRRD, que foi negociada a grande velocidade, contém, a meu ver, elementos que precisam de ser revistos - há uma revisão prevista para 2018 mas convém começar desde já esta reflexão.
Toda esta arquitetura foi concebida, negociada e aprovada entre 2012 e 2014, o que é de facto um ritmo aceleradíssimo para o nível de sofisticação e para a profundidade daquilo que está em causa.
Lamentavelmente este projeto não está completo - falta nomeadamente o backstop (rede de segurança financeira) para o fundo único de resolução – de forma a garantir que existe dinheiro suficiente, se necessário, para operacionalizar a resolução de um grande banco. Dinheiro este que é emprestado ao fundo para ser reembolsado pelos bancos.
Falta também todo o processo de estabilização dos depósitos bancários inferiores a 100 mil euros. Uma arquitetura de união bancária com regras comuns para a supervisão e para a resolução dos bancos, mas com garantias diferentes para os depósitos consoante o país onde o banco está instalado não faz qualquer sentido e é totalmente incompreensível. Tanto mais que a União Bancária também tem por objetivo garantir um bem público que é a estabilidade e a confiança no sistema financeiro.
O facto de faltarem peças nesta arquitetura, e o facto de não estar a ser possível afinar os instrumentos que já estão operacionais, pode gerar efeitos completamente contraproducentes e imprevistos. Isto tem de ser evitado a todo o custo porque seria gravíssimo que um projeto que já está constituído na parte mais difícil fique bloqueado  na parte da garantia comum dos depósitos, porque este bloqueio vai criar desequilíbrios brutais e comprometer a viabilidade das outras partes que já estão construídas (supervisão e resolução).
Não há que ter dúvidas: enquanto estiver a meio caminho, este projeto pode ruir completamente.
Um último dossier absolutamente essencial e a que dediquei grande energia é o do combate à fraude e evasão fiscal. O debate foi aberto pelo PE e em particular pelo S&D já em 2012 com uma campanha contra os paraísos fiscais: “No to tax havens”. A verdadeira mobilização do PE só aconteceu, todavia, com o escândalo das revelações das estratégias de evasão fiscal das grandes multinacionais, com a cumplicidade e mesmo ativismo de vários Governos da UE, que ficou conhecida como LuxLeaks.
Foi de facto o PE que pôs na agenda da UE a urgência de rever a prática da concorrência fiscal agressiva praticada por alguns Estados e mesmo de rever os Tratados da UE para acabar com a unanimidade nas decisões fiscais no Conselho da UE que impede quaisquer progressos nesta área.
Permitir que algumas empresas operem de forma concorrencial num mercado, ficando ao mesmo tempo praticamente isentas de pagar impostos pelo facto de explorarem os desajustes que as várias legislações combinadas permitem, é inaceitável. Isto equivale a conceder a estas empresas ajudas públicas no valor dos impostos que deixam de pagar.
Ora, sendo as ajudas públicas proibidos pelo direito europeu porque distorcem a concorrência, como é que um perdão de contribuições devidas ao Estado equivalentes a um subsídio é considerado uma prática aceitável?
Sobretudo em período de grande crise económica e orçamental, estes desequilíbrios geram uma injustiça insuportável ao permitir que a carga das contribuições para os orçamentos nacionais seja totalmente ou quase totalmente colocada sobre os ombros das PME e dos contribuintes individuais, que, por definição, têm muito mais dificuldade em operar nos mercados internacionais.
O facto de, em paralelo, as grandes fortunas também se distanciarem do fisco nacional ao estacionarem” em paraísos fiscais completamente opacos, agrava ainda mais essa situação de injustiça.
A verdade é que as grandes empresas e as grandes fortunas estão praticamente isentas de impostos, enquanto que os que vivem do seu trabalho e as pequenas empresas são oprimidos com uma carga fiscal insuportável. Esta situação também prejudica os Estados que optam por não seguir uma política de agressividade fiscal como alguns dos parceiros.
Esta questão foi colocada de forma muito clara durante este último mandato no PE, resultando num relatório - de que fui co-autora - com recomendações muito concretas e claras à Comissão Europeia sobre como acabar com esta situação.
Os Estados têm de permanecer sob pressão política para deixarem de fazer da concorrência fiscal agressiva um negócio em que oferecem vantagens extraordinariamente competitivas e opacas às empresas, capturando a matéria coletável dos países que são parte da mesma União Monetária, do mesmo projeto político e do mesmo mercado interno.

Nenhum dos projetos em que participei ativamente estes últimos doze anos no PE está neste momento completo. Todos precisam de ser monitorizados, avaliados, completados e afinados. Esperemos que assim seja, para bem do projeto europeu.

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