12 anos de trabalho enquanto
deputada no Parlamento Europeu terminam amanhã, dia em que assumo um novo
desafio no Banco de Portugal. É hora de fazer um balanço sobre este percurso
que iniciei em 2004 e deixar algumas reflexões para o futuro.
Nenhum balanço poderá ser desligado
do período absolutamente excecional que a UE tem vivido ao enfrentar a maior
crise económica da sua História que é hoje considerada ainda mais grave do que
a Grande Depressão dos anos 1930.
Ao longo destes anos, o PE
cresceu muito em responsabilidade, influência e protagonismo. Dentro do PE, a Comissão
dos Assuntos Económicos e Monetários (ECON), que integrei desde que fui eleita eurodeputada
pela primeira vez em 2004, foi absolutamente central: foi aí que foram
trabalhados todos os textos legislativos de reação à crise que determinam, e
determinarão, o que a UE é hoje e será no futuro.
Antes mesmo da crise já tínhamos
aprovado na ECON uma série de textos legislativos para a regulação e supervisão
dos mercados financeiros porque, como se veio a confirmar – com grandes custos
para todos nós – a suposta auto-regulação do setor não existe.
Durante a crise, desenvolvemos na
ECON todas as tentativas possíveis ao nível político para estimular o
relançamento europeu, apesar de esta ser uma área de competência dos Governos
dos Estados membros da UE.
O papel do PE foi bem mais
incisivo e mais claro na revisão do Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC) enquanto
co-legislador dos textos legislativos mais conhecidos por Six Pack e Two Pack. O mesmo aconteceu com o enorme pacote
legislativo relativo à União Bancária que é, de facto, um complemento e um prolongamento
da União Económica e Monetária (UEM).
Na ECON fui quase sempre a coordenadora
– ou porta-voz - das posições dos deputados do Grupo dos Socialistas e
Democratas europeus (S&D), o segundo maior do PE, por eleição dos meus
pares.
Neste papel, coube-me antes de
mais negociar e construir consensos entre as posições dos membros do S&D –
que podem ser muito diferentes consoante o país de origem cada deputado – e, em
paralelo, com os meus homólogos dos outros grupos parlamentares.
O facto de ter sido coordenadora
do segundo maior grupo do PE, e de ter sido igualmente “relatora” (responsável
pela negociação de vários textos legislativos dentro do PE e com o Conselho de
Ministros da UE) ou relatora-sombra (representante dos socialistas na
negociações internas no PE), permitiu-me participar na génese, nas negociações
e nas decisões finais de todos os grandes textos legislativos aprovados ao
longo destes anos.
Nestes dois papéis de
coordenadora e de relatora sinto-me naturalmente co-responsável pelo que correu
bem mas também pelo que correu mal.
Mesmo se tenho a satisfação de
constatar que nós, socialistas, estivemos quase sempre do lado certo da
barricada, a verdade é que o nosso papel, enquanto segundo grupo num PE em que
a direita continua a predominar, foi sobretudo o de matizar e limitar os erros
maiores ou mais graves da agenda dominante que e muito mais ideológica do que
técnica ou científica.
Trabalhei pessoalmente até aos limites
do que me era física e politicamente possível, participando em todo o processo
da revisão do PEC em que se apontavam já algumas das dimensões de combate à
agenda excessivamente austeritária imposta nos países mais frágeis e mais
afectados pela especulação financeira.
Foi um processo legislativo
absolutamente fundamental. Sem termos conseguido alcançar todos os nossos
objetivos – tornar a governação económica efetivamente inteligente -
conseguimos ainda assim introduzir alguns elementos de flexibilidade na
aplicação do PEC que a Comissão Europeia tem vindo a utilizar.
Questionámos em permanência a agenda
da austeridade imposta pela troika e mesmo a própria estrutura da troika,
exigindo em permanência uma prestação regular de contas à CE, ao Eurogrupo, ao
FMI e ao BCE.
Foi sem qualquer dúvida um
período muito interessante mas também muito doloroso e penoso porque, limitados
pelo nosso peso político de então, tivemos de conviver com uma agenda que não
era de todo a nossa para a Europa.
Em 2011 - ano do arranque do
programa de ajustamento em Portugal – e porque já questionávamos muito
fortemente a qualidade das recomendações que estavam a ser feitas à Grécia,
integrei uma “troika alternativa de contestação à agenda austeritária da troika
oficial que se deslocou a Atenas precisamente para perceber no terreno os erros
que estavam a ser cometidos.
Infelizmente, as nossas críticas
estavam corretas: a lógica da austeridade assumida e imposta em toda a Europa
sem qualquer mecanismo de reequilíbrio gerou uma recessão generalizada.
Apesar de a legislação do Six
Pack prever explicitamente, no capítulo dos
desequilíbrios macroeconómicos, que os países com excedentes devem
utilizá-los para dar energia e oxigénio à economia, ninguém, nem mesmo a
Comissão Europeia, conseguiu impor o cumprimento desta regra.
Foram criados também alguns
mecanismos que sem serem um orçamento europeu, poderão vir a constituir o seu
embrião, como o Mecanismo Europeu de Estabilidade (ESM).
Também acompanhámos de perto,
apoiámos e incitámos o BCE a agir no limite do seu mandato com as intervenções
sobre a dívida soberana que permitiram, finalmente, acalmar a especulação.
No fim de todo este processo
penso que houve passos na direção certa. Mas não chegam.
Enquanto grande teste à união
monetária, a crise teve pelo menos o grande mérito de exibir as lacunas e fragilidades
que persistem na arquitetura da UEM e que precisam de ser rapidamente
corrigidas, sob pena de todo o projeto ficar ameaçado de desmoronar.
É preciso, e espero que assim
aconteça, que o impulso que começou a ser dado em 2012, e que se consolidou
nalguns textos importantes de referência, prossiga de forma a permitir corrigir
estas lacunas.
Originalmente a União Monetária era
um projeto mais completo do que aquele que acabou por ser construído e
permanece assim hoje incompleta em várias dimensões, nomeadamente no que se
refere à construção progressiva, tal como previsto, de um orçamento específico
para a UEM para servir como mecanismo de
relançamento económico e de estímulo à economia em caso de grande crise num ou
mais países e de promoção da convergência estrutural. Por muito que a teoria
neo-clássica dissesse o contrário não há nenhuma mão invisível que crie esta
convergência. Pelo contrário, as disparidades aumentam permanentemente num
clima de concorrência perfeita e onde muitos dos instrumentos de estabilização ficam
por definição anulados.
Sempre soubemos que havia um
sério risco em avançar para uma União Monetária entre economias tão diferentes.
Mas tínhamos uma promessa de que os objetivos da competitividade e da coesão
seriam as duas faces da mesma moeda e que se manteriam enquanto objetivos
estáveis.
Tínhamos também a promessa
política de que aquilo que se fosse notando que faltava ou que se desviasse do
rumo da competitividade e da coesão, e que precisasse de ser completado no
processo de construção ou de funcionamento da Moeda Única, o seria. Todo o
edifício foi construído na base de uma vontade política de fazer dele um projeto
de sucesso.
Ora a partir de determinado momento,
com o alargamento da UE aos países de Leste e com a globalização - elementos que
não estavam previstos - a vontade política para corrigir o que não estava a dar
os resultados previstos ou para completar o que estava em falta, deixou de
existir sobretudo por parte de quem estava beneficiar individualmente com a
situação.
O problema é que se este projeto
não for rapidamente revisitado e completado, poderá transformar-se num enorme
insucesso.
Uma outra dimensão em que
trabalhámos em profundidade na ECON foi a da regulação e supervisão dos
mercados financeiros e da constituição das peças legislativas e da arquitetura
institucional do projeto da União Bancária.
Antes disso, já tinha participado
nos combates anteriores à crise, em 2006, sobre os riscos sistémicos que lhe estavam
associados. Aqui, os socialistas anteciparam-se com uma quantidade de
iniciativas, por exemplo sobre os riscos sistémicos dos hedge funds e private
equity, ou seja, produtos financeiros de transparência praticamente
inexistente. Na altura a ideia dominante era a de que os mercados financeiros
se auto-regulariam por exemplo com códigos de conduta. A realidade foi outra,
como vimos, com a acumulação de riscos a vários níveis e sem qualquer controle
que esteve na origem do rebentar da grande bolha dos mercados financeiros e do
sector imobiliário. As consequências são bem conhecidas...
Sem regulação e supervisão
adequadas por parte dos supervisores nacionais, os mercados financeiros
explodiram com a globalização.
Em 2008/2009, com a realidade a
contestar a teoria predominante da auto-regulação, houve uma mudança súbita de
agenda. A ECON esteve no centro de todos os textos legislativos ou quase todos
- do lado europeu - para regular e supervisionar os mercados europeus. MIFID,
MIFIR, EMIR, CRD3, CRD4, são apenas alguns exemplos de um vasto conjunto de
novas normas destinadas a limitar os riscos nos mercados financeiros.
Dentro deste grande corpo da
regulação e supervisão, a União Bancária ganhou uma aceleração específica,
tornando-se no projeto talvez mais emblemático, mais importante e possivelmente
mais consensual em termos políticos que era preciso desenvolver para reforçar a
União Económica e Monetária.
Seria muito importante que não
acontecesse relativamente à União Bancária aquilo que parece ter acontecido com
a UEM, ou seja, que se complete a parte em que os Estados aceitam delegar para
o nível europeu, num enorme acto de confiança, responsabilidades vitais de
supervisão e dos processos de resolução de bancos, sem que o nível europeu
assuma por seu lado as garantias de estabilidade que que são a contrapartida da
delegação de competências.
O projeto está incompleto e
precisa por isso de ser acompanhado, monitorizado e afinado com o maior cuidado
de forma a gerar os resultados pretendidos e não outros diferentes. E o
resultado que se pretende é, por um lado, que os contribuintes não sejam
forçados a funcionar como acionistas suportando as perdas dos bancos em tempos
de crise, quando ficam ausentes do processo em período de boom económico quando
os bancos distribuem lucros pelos seus acionistas.
Houve aqui uma estratégia de
reequilíbrio entre bailout e bail-in, que está essencialmente expressa na legislação
mais conhecida por BRRD e na nova arquitetura de constituição de um fundo comum
de resolução financiado pelos bancos para ser utilizado em caso de crise e de
um sistema também comum de supervisão.
A BRRD, que foi negociada a
grande velocidade, contém, a meu ver, elementos que precisam de ser revistos - há
uma revisão prevista para 2018 mas convém começar desde já esta reflexão.
Toda esta arquitetura foi
concebida, negociada e aprovada entre 2012 e 2014, o que é de facto um ritmo
aceleradíssimo para o nível de sofisticação e para a profundidade daquilo que
está em causa.
Lamentavelmente este projeto não
está completo - falta nomeadamente o backstop (rede de segurança financeira) para
o fundo único de resolução – de forma a garantir que existe dinheiro
suficiente, se necessário, para operacionalizar a resolução de um grande banco.
Dinheiro este que é emprestado ao fundo para ser reembolsado pelos bancos.
Falta também todo o processo de
estabilização dos depósitos bancários inferiores a 100 mil euros. Uma
arquitetura de união bancária com regras comuns para a supervisão e para a
resolução dos bancos, mas com garantias diferentes para os depósitos consoante
o país onde o banco está instalado não faz qualquer sentido e é totalmente
incompreensível. Tanto mais que a União Bancária também tem por objetivo garantir
um bem público que é a estabilidade e a confiança no sistema financeiro.
O facto de faltarem peças nesta
arquitetura, e o facto de não estar a ser possível afinar os instrumentos que
já estão operacionais, pode gerar efeitos completamente contraproducentes e
imprevistos. Isto tem de ser evitado a todo o custo porque seria gravíssimo que
um projeto que já está constituído na parte mais difícil fique bloqueado na parte da garantia comum dos depósitos, porque
este bloqueio vai criar desequilíbrios brutais e comprometer a viabilidade das outras
partes que já estão construídas (supervisão e resolução).
Não há que ter dúvidas: enquanto
estiver a meio caminho, este projeto pode ruir completamente.
Um último dossier absolutamente
essencial e a que dediquei grande energia é o do combate à fraude e evasão
fiscal. O debate foi aberto pelo PE e em particular pelo S&D já em 2012 com
uma campanha contra os paraísos fiscais: “No to tax havens”. A verdadeira mobilização
do PE só aconteceu, todavia, com o escândalo das revelações das estratégias de evasão
fiscal das grandes multinacionais, com a cumplicidade e mesmo ativismo de
vários Governos da UE, que ficou conhecida como LuxLeaks.
Foi de facto o PE que pôs na
agenda da UE a urgência de rever a prática da concorrência fiscal agressiva praticada
por alguns Estados e mesmo de rever os Tratados da UE para acabar com a
unanimidade nas decisões fiscais no Conselho da UE que impede quaisquer
progressos nesta área.
Permitir que algumas empresas
operem de forma concorrencial num mercado, ficando ao mesmo tempo praticamente
isentas de pagar impostos pelo facto de explorarem os desajustes que as várias legislações
combinadas permitem, é inaceitável. Isto equivale a conceder a estas empresas ajudas
públicas no valor dos impostos que deixam de pagar.
Ora, sendo as ajudas públicas
proibidos pelo direito europeu porque distorcem a concorrência, como é que um
perdão de contribuições devidas ao Estado equivalentes a um subsídio é
considerado uma prática aceitável?
Sobretudo em período de grande
crise económica e orçamental, estes desequilíbrios geram uma injustiça
insuportável ao permitir que a carga das contribuições para os orçamentos
nacionais seja totalmente ou quase totalmente colocada sobre os ombros das PME
e dos contribuintes individuais, que, por definição, têm muito mais dificuldade
em operar nos mercados internacionais.
O facto de, em paralelo, as
grandes fortunas também se distanciarem do fisco nacional ao estacionarem” em
paraísos fiscais completamente opacos, agrava ainda mais essa situação de
injustiça.
A verdade é que as grandes empresas
e as grandes fortunas estão praticamente isentas de impostos, enquanto que os
que vivem do seu trabalho e as pequenas empresas são oprimidos com uma carga
fiscal insuportável. Esta situação também prejudica os Estados que optam por
não seguir uma política de agressividade fiscal como alguns dos parceiros.
Esta questão foi colocada de
forma muito clara durante este último mandato no PE, resultando num relatório -
de que fui co-autora - com recomendações muito concretas e claras à Comissão
Europeia sobre como acabar com esta situação.
Os Estados têm de permanecer sob
pressão política para deixarem de fazer da concorrência fiscal agressiva um
negócio em que oferecem vantagens extraordinariamente competitivas e opacas às
empresas, capturando a matéria coletável dos países que são parte da mesma
União Monetária, do mesmo projeto político e do mesmo mercado interno.
Nenhum dos projetos em que
participei ativamente estes últimos doze anos no PE está neste momento
completo. Todos precisam de ser monitorizados, avaliados, completados e
afinados. Esperemos que assim seja, para bem do projeto europeu.
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