Monday 7 March 2016

Gestão pouco eficaz e desumana da questão dos refugiados dá um golpe brutal e adicional na credibilidade da Europa

À conversa com Silva Peneda, ontem, na Rádio Renascença

http://rr.sapo.pt/video/95560/crise_dos_refugiados_europa_ja_nao_e_o_que_foi

Conversas Cruzadas

“Europa já não é o que foi, mas pode voltar a ser"

06 Mar, 2016 - 16:14 • José Bastos
Atenas, Bodrum e Bruxelas. Em três imagens, Silva Peneda desenha a crise. Já Elisa Ferreira diz esperar que a “UE volte a ser reconstruída”.
 







Elisa Ferreira e Silva Peneda no Conversas Cruzadas

O presidente do Conselho Europeu está optimista na contagem decrescente para a cimeira União Europeia-Turquia de segunda-feira, em Bruxelas, na busca de uma resposta coordenada para a crise migratória.
Donald Tusk afirmou que “pela primeira vez, desde o início da crise”, pode antever “emergir um consenso europeu em redor de uma estratégia global”. O governo de Ancara disse esta semana estar disposto a readmitir no seu território uma parte dos migrantes que se dirigiram para a Europa.
Divididos sobre o dossier migratório, os líderes europeus são confrontados com a dura realidade dos números. Em dois meses, mais de 135 mil pessoas chegaram por mar à Europa, com maior pressão migratória na Grécia. Em 2015, segundo números do Eurostat, houve mais de um milhão e 250 mil novos pedidos de asilo na União Europeia. É um recorde absoluto – mais do dobro das solicitações de 2016, a maioria feita por sírios, afegãos e iraquianos.
Desde Setembro, oito países restabeleceram parcialmente controlos fronteiriços para tentar travar os fluxos migratórios. A Comissão Europeia acabou a semana a propor um roteiro para restaurar o funcionamento integral de Schengen.
Na reunião de segunda-feira com a Turquia joga-se também boa parte do sucesso da cimeira extraordinária sobre os refugiados agendada para 18 e 19 de Março. A capacidade de Bruxelas ser consequente servirá de barómetro para outras crises a fragilizar uma Europa que enfrenta problemas de forma unilateral e ao sabor de sensibilidades nacionais.
No “Conversas Cruzadas” deste domingo, a eurodeputada Elisa Ferreira mostra confiança numa solução, mas não poupa críticas à gestão da crise migratória. “Espero que rapidamente surja uma solução. Dito isto, acho que a maneira muito pouco eficiente e muito pouco humana como tem sido tratada a questão dos refugiados deu um golpe brutal e adicional na credibilidade da Europa”, afirma.
“Uma imagem que já não era muito consistente pelo modo como geriu a crise de 2008 e depois a crise da dívida soberana e, neste momento, não precisávamos mais desta prova”, diz Elisa Ferreira.
“Prova de dois aspectos: de que a Europa perdeu o sentido de liderança e partilha para resolver problemas e esta reversão dos países sobre eles próprios e este descontrolo da própria agenda política e mediática chegou a um ponto em que valores essenciais são questionados.
“Valores como o respeito pela vida humana e pelos direitos humanos na base da construção da Europa são todos os dias postos em causa e não há uma campainha de alarme suficientemente forte para fazer com que as pessoas se juntem à volta de uma mesa e elaborem um programa efectivo de combate ao problema”, sustenta a deputada do PS no Parlamento Europeu.



Silva Peneda: “Há três imagens de 2015 a provar que a Europa já não é o que foi”
Na viagem às causas das fragilidades do momento europeu, José da Silva Peneda sugere um expressivo exercício visual.
“Na vida há imagens marcantes. Imagens a perdurar. As imagens ajudam-nos a perceber como tudo muda. Em 2015 há três imagens a mostrar que a Europa não é mais o que foi”.
“A primeira: em Atenas aquele idoso numa fila de multibanco. Os bancos encerrados e aquele reformado ali pacientemente à espera de levantar algum dinheiro”, diz.
“A segunda imagem: a criança de três anos que apareceu morta numa praia da Turquia. A terceira imagem: agora no final de Novembro, ver tanques e o exército a fazer patrulha”, prossegue Silva Peneda.
“Três imagens que, meses antes, eram impensáveis na Europa. Ao recordar estas imagens reflectimos sobre o que se alterou. Mudou tudo. Alterou-se de uma forma que está relacionada com conceitos de ‘estabilidade’ e ‘controlo’”.
“Neste momento, por decisão da Áustria, está em causa o espaço Schengen. Uma conquista, até há pouco, tida como adquirida. Segundo aspecto: a segurança interna, veja-se os atentados em Paris”, sustenta o conselheiro adjunto de Jean-Claude Juncker.
“Outro ponto: a sobrevivência do euro esteve ameaçada. O euro ainda não está completamente a salvo. Ainda outra alínea: o aumento das desigualdades não só entre classes profissionais e sociais, mas também entre países. A zona euro devia ser uma máquina de convergência e, há muito, deixou de o ser”, faz notar Silva Peneda.
“Ainda a ameaça da desintegração: o problema do Reino Unido. A hipótese de, pela primeira vez, um país pedir para sair da Europa, tendo como pano de fundo o extremismo de posições da direita à esquerda”, afirma.
“Este quadro é composto de novas realidades. Estão aí. O que vejo de negativo? Os processos de decisão na União Europeia continuam a ser vistos muito numa perspectiva de curto prazo. As soluções vão-se atropelando umas às outras. Não vejo um fio condutor, uma política integrada – a crise dos migrantes é o exemplo típico – a permitir tomar decisões com princípio, meio e fim”, diz.
“Já expliquei a minha visão desta crise dos migrantes se houvesse uma perspectiva de médio, longo prazo e não apenas do curto prazo. Desde logo, há um drama e a Europa não pode deixar de atender aos refugiados. Mas numa visão de médio prazo, projectando um olhar para a análise demográfica – do mais fácil de prever no plano europeu – sabemos que a Europa vai ter, daqui a 20, 30 anos, uma carência de mão-de-obra qualificada”, antecipa Silva Peneda.
“A política social deve dar prioridade a esquemas de integração daqueles que vão ocupar esses postos de trabalho. Infelizmente as soluções são sempre tomadas em exercícios de curto prazo e sem uma visão temporal tão alargada”, remata.
Elisa Ferreira: “Espero que a Europa volte a ser reconstruída”
Com o radar europeu a assinalar várias crises, Elisa Ferreira defende “mais Europa”, mas sem deixar de reconhecer que o momento encerra enormes debilidades.
“Acho que precisávamos de mais Europa, mas as condições para avançar nesse sentido nunca estiveram tão fragilizadas como agora. No fundo, esta falta de orientação, de guia que, no passado, associávamos muito ao papel da Comissão Europeia liderada por Jacques Delors”, refere Elisa Ferreira.
“Quando era funcionária pública – tive o gosto de trabalhar com Silva Peneda na CCRN – e na preparação da adesão e, enquanto funcionários, tínhamos de ir a Bruxelas e dizíamos ‘vocês colem-se à Comissão em caso de dúvida porque a Comissão defende”. A Europa tinha, de facto, este processo de aprofundar e alargar. Havia essa preocupação desses dois passos”, relembra a economista.
“Numa primeira fase criaram-se os fundos estruturais depois o fundo de coesão, precisamente porque havia esta preocupação. Com os últimos alargamentos, 2004 e 2007, e com a confluência de tantas crises: o sistema financeiro passou a ser muito mais importante que a economia real, a globalização e novos parceiros, factores a desestabilizar a Europa e, depois, de facto, sem motor, sem liderança, os países partem-se e perdem-se”, defende.
“Neste momento encontramos, de facto, os vários países com diferenças brutais de pensamento e com reacções quase epidérmicas – como no caso dos refugiados – impensáveis. Espero que a Europa volte a ser reconstruída. Estamos aqui dois europeístas, mas, nesta altura, são precisos grandes saltos estruturais”, diz Elisa Ferreira.
“Lembro a frase tradicional “o gigante económico e o anão político” e é importante ver até que ponto, de facto, a Europa também se desagregou e perdeu consistência interna para ser capaz de com inteligência, lógica e rapidez reagir aos vários desafios. A Europa perdeu-se um bocado no caminho”, diz.
“Por várias razões não totalmente fáceis de sintetizar, a Europa foi incapaz de definir com clareza os seus interesses no novo cenário da globalização. Falamos com os Estados Unidos, India ou o Brasil e eles sabem genericamente o que querem da globalização. Podem pretender coisas mais lógicas ou menos, mas a Europa não sabe”.
“A Europa deixou-se ir entre diferentes interesses: importadores a querer liberalizar, produtores a querer proteger. Chega-se ao fim e ficam os importadores a ganhar, porque estão mais ligados ao sector financeiro que é, no fundo, quem tem mais poder”.
“O alargamento também não ajudou nada”, tal como “o facto de a União Europeia continuar a não ter um orçamento capaz para atacar todos estes problemas. Ao mesmo tempo não há condições políticas. Não há vontade política”.
Silva Peneda: “Dito a direito: a Europa precisa de mais federalismo”
Silva Peneda volta à força metafórica das três imagens por si propostas neste “Conversas Cruzadas”: de Atenas, Bodrum e Bruxelas, afinal, três das faces mais inquietantes das tempestades a fustigar uma ideia muito particular de Europa.
“A Elisa Ferreira tem razão nessa visão de que a Europa actuou muito de acordo com os interesses sectoriais. A globalização é um bom exemplo. É evidente que os importadores o que queriam era maior liberdade para ganhar dinheiro com as importações e os produtores protegerem-se e a Europa vai decidindo de acordo com os compromissos que estabelece em várias áreas”, afirma Silva Peneda.
“Usei o exemplo daquelas três imagens para sublinhar que qualquer desses problemas exige um elemento comum: uma visão sistémica. Nenhum deles é passível de ser resolvido ou por um só estado membro ou por um único sector. A ausência de visão sistémica é o factor mais importante na fragilização do processo de resolução de problemas”, diz.
“Seja o euro, os refugiados ou outros problemas onde a Europa está a perder o controlo e a criar factores de instabilidade. Dito a direito: é uma visão mais federalista que a Europa precisa neste momento. Não vejo que a resolução de um dos problemas do momento exija menos Europa, antes pelo contrário. Todos os problemas exigem mais Europa. O que estamos a ver é a visão do imediatismo, do curto prazo e, muitas vezes, do populismo”, faz notar o conselheiro do presidente da Comissão Europeia.
“A Europa precisa de uma política integrada e de uma visão de médio prazo e de uma revisão dos seus processos de decisão. A Elisa Ferreira tocou num ponto importante: o poder da Comissão. De facto, os países fracos ganham com a Comissão forte. Nos últimos anos não tem sido esse o cenário. O Conselho assumiu muito mais protagonismo. No tempo de Delors erámos só 12. Era mais fácil”, reconhece.
“Mas não se pode voltar atrás. Passado é passado e temos de olhar para o futuro. Não há condições políticas neste momento, mas é altura de repensar o processo de decisão nas instituições europeias. O processo de decisão. Pelo menos na zona euro”.
“Sempre disse que quando se cria uma zona com moeda única os países perdem soberania monetária. Não podendo desvalorizar a sua própria moeda os países menos competitivos perdem riqueza a favor dos mais ricos”.
“Ou há mecanismos de transferências para suavizar e solidificar o processo ou se entra numa dinâmica complicada. Esses mecanismos de transferência e de segurança não são ainda hoje muito claros. Neste aspecto há uma grande conversa ainda ter ainda no futuro”, afirma Silva Peneda.
Elisa Ferreira: “A lógica da direita conduz ao radicalismo”
Elisa Ferreira não deixa sem críticas a opção política que, na sua opinião, estará a debilitar o projecto de integração europeia. “A ideia de que a lógica da austeridade sem regra nem limites não tem alternativa é a maneira mais fácil de criar populismos. Lógica que imperou de forma monolítica na agenda europeia nos últimos anos”, afirma a eurodeputada do PS.
“A construir esta Europa no passado foram, de facto, dois grupos políticos – onde eu estou e o Silva Peneda e o actual presidente da Comissão – na velha tradição democrata-cristã e social-democrata. Neste momento a lógica de reconhecimento sem limites dos mercados e de ausência total de regulação - que esteve a dominar através de uma direita que já não é a direita europeísta - acaba por conduzir as pessoas ao radicalismo”, alerta.
“Os eleitores que não encontram alternativa entre uma direita que é esta e uma esquerda moderada optam pelo radicalismo. Aconteceu na Grécia e está acontecer na França”.
“Se comparada a situação actual da Europa e dos Estados Unidos, nos Estados Unidos já saíram da crise de 2008 resolveram o problema do desemprego e agora já estão a antecipar uma nova crise”, indica Elisa Ferreira.
“É uma economia federal”, contrapõe Silva Peneda depois de ter referido os indicadores positivos do crescimento económico na Europa ao longo do último ano, países do sul incluídos.
“É uma economia federal. Eu fico contente com os números económicos de 2015, mas isso também prova como foi desgraçada a situação da Europa desde 2007”, é o argumento agregado ainda por Elisa Ferreira.
“Quero sublinhar que, apesar de todas as dificuldades, temos de ter esperança”, responde Silva Peneda.
Esperança. Afinal, o exercício de fundada fé europeísta no “Conversas Cruzadas” em que se acredita ser ainda possível construir a Europa que nem Monnet chegou a sonhar.

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