No momento em que escrevo, mantenho a esperança de
que chegaremos ao dia de hoje já com um acordo entre os líderes dos países da
Zona Euro (ZE) que assegure o financiamento (mesmo que parcial) da Grécia nos
próximos meses, afastando o risco que nunca foi tão real de assistirmos ao
início do desmantelamento da moeda única europeia, o projecto mais emblemático
da Europa.
Se assim for, é de esperar que todos os envolvidos
possam finalmente tirar as lições que se impõem sobre as razões da impotência
flagrante da ZE - com um PIB de 15 biliões de euros – em resolver o problema da
dívida de 330 mil milhões de euros da Grécia - país que representa apenas 2% do
seu PIB e população.
A verdade é que, alheia ao que se passa à sua volta
– a explosão dos fundamentalismos, os milhares de fugitivos afogados na
tentativa de alcançar a Europa, a reconfiguração do poder mundial – a ZE, economicamente
estagnada, socialmente desagregada e transformada num "saco de gatos",
mantém-se, há anos, centrada num único problema sem que ninguém queira assumir
responsabilidades. Mesmo com um acordo sobre a Grécia, é duvidoso que este
problema possa ser definitivamente resolvido sem uma alteração estrutural e
profunda do funcionamento da própria ZE.
Alexis Tsipras, primeiro-ministro grego, falou quarta-feira
no Parlamento Europeu (PE). Ninguém de bom senso poderá classificar as suas
intervenções como radicais ou demagógicas. Não sou sua apoiante nem do Syriza,
mas o que Tsipras disse é basicamente o mesmo que tenho dito, e escrito, desde
2010: a dívida de um Estado só pode ser paga se a sua economia crescer e por
essa via conseguir gerar excedentes.
Ora a lógica dos programas de ajustamento impostos
à Grécia como contrapartida dos empréstimos da ZE e FMI foi uma espécie de
"conta de chegar", como dizem os brasileiros e como descreve o famoso
economista Barry Eichengreen: "os credores calcularam de
início o excedente primário necessário ao reembolso da dívida" e "a
seguir forçaram o país a esmagar despesas e a cobrar impostos de modo a obter
esses excedentes". Ou seja, os países do Euro e o FMI "ignoraram o
facto de que, ao fazê-lo, condenaram o país a uma depressão ainda mais
profunda", na qual, acrescento eu, a dívida e o empobrecimento florescem.
Este é o dogma da substância dos processos de
ajustamento ao qual acresce uma questão de método: no debate de quarta-feira,
do lado "europeu" estavam Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão
Europeia e Donald Tusk, presidente das cimeiras da UE e da ZE. Em
contrapartida, não estavam o presidente do Eurogrupo, o FMI e os altos
funcionários da "Troika", nem Angela Merkel, e o seu ministro
Wolfgang Schäuble, que têm condicionado todas as decisões "europeias"
nesta matéria. Com tantos atores, quem são os responsáveis pelo falhanço
permanente na resolução do problema grego que, longe de ser apenas grego, é um
problema de toda a ZE? E, mais ainda, se o Euro se desfizer?
Do lado europeu, a responsabilidade é sempre
diluída entre numerosos atores, mas, no que toca à Grécia, todos os dedos apontam
um único culpado: o primeiro-ministro. Tsipras é culpado porque a
Grécia "não fez ajustamento nenhum" nem verdadeiras reformas, porque
as estatísticas não são fiáveis, porque apresentou propostas irrealistas,
porque é arrogante, porque convocou um referendo (em resposta, ao que consta, a
um ultimato da ZE), porque no fundo quer sair do Euro sem ter os custos
correspondentes, porque é um comunista que telefona a Putin, porque quer que os
gregos recebam mais dinheiro para continuarem a esbanjá-lo sem trabalhar,
porque não usa gravata e isso é uma provocação…
Tudo isto se tem ouvido nas hostes
"europeias", num coro multifacetado mas constante. Durante o debate
no PE foram os conservadores do PPE, nomeadamente os alemães da CDU, quem
melhor verbalizou este radicalismo. Porque é de radicalismo que falamos, como
se a Alemanha e aliados já tivessem decidido eliminar do Euro a Grécia e os
seus problemas. A única voz moderada tem vindo de Juncker e, entre os líderes
nacionais, do francês Hollande - que tem sido muito ativo na busca de um acordo
- e, por vezes, do italiano Renzi.
Tsipras pode ser tudo isso - não sei. Mas com a evidência que tenho - e que confirmei com a sua prestação no PE
- penso que o seu pecado capital é ousar contestar abertamente a agenda
"europeia", o que a política instalada de "consensos" não
admite. O consenso europeu exige uma obediência total ao dogma da austeridade
na versão da direita europeia que, a partir da "grande coligação
alemã" (CDU/SPD), consegue juntar no mesmo coro muitos dos protagonistas
socialistas, sobretudo do norte da Europa: vejam-se as declarações de Sigmar
Gabriel, líder do SPD alemão, do holandês Dijsselbloem e até de Martin Schulz,
presidente do PE, que entretanto as desmentiu.
Mas a questão central é saber se a tal política de
austeridade, impondo custos, ao menos funciona, ou se, pelo contrário, a sua
eficácia é questionável. Os dados confirmam a segunda hipótese: sob
a alçada tutelar da Troika, a Grécia reduziu de forma histórica, entre 2009 e
2014, o défice orçamental estrutural (num montante equivalente a 20% do PIB),
perdeu no ajustamento mais de um quarto do PIB e deixou 50% dos jovens no
desemprego.
Foi este o preço a pagar para endireitar a
economia e criar as bases para o crescimento e uma competitividade acrescida? O
que é dramático é que a resposta é obviamente negativa, como ilustram as
críticas que pululam no seio dos próprios donos da agenda dominante, a par da
explosão da dívida provocada pela austeridade.
Quem assume a responsabilidade por este
sacrifício inútil? Não é honesto nem sequer correto apontar responsabilidades a
Tsipras que governa há cinco meses um país com problemas que se arrastam há
décadas.
Pode-se criticar os gregos por dizerem
"basta", não ao Euro, mas a esta política? Pode-se pedir a Tsipras
que se cale e obedeça?
Em concomitância com o debate no PE, o governo grego enviou aos parceiros o
seu pedido formal de ajuda do ESM, o mecanismo europeu de estabilidade criado
em 2013 para apoiar os países com problemas de liquidez. Este apoio está
condicionado a uma série de contrapartidas, nomeadamente em termos de reformas
estruturais.
Veremos o que decidirão hoje os líderes europeus e
que amarras serão colocadas nestas contrapartidas. Esperemos que permitam o
lançamento das bases mínimas para uma solução duradoura para a Grécia. O que,
mesmo assim, não nos livra da obrigação de refletir e de tirar as devidas
lições de todo este processo.
Se, em contrapartida, as contrapartidas forem um
pretexto para regressar ao mesmo, estaremos a cavar o fim do Euro. Se assim
for, não contem comigo para dizer que a culpa é de Tsipras.
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