As revelações dos Panama Papers
voltam a lembrar-nos que só com o fim dos paraísos fiscais é que será possível
acabar com os mecanismos e canais de fraude, evasão fiscal e lavagem de
dinheiro que lhes estão associados.
Também nos lembram, de novo, o enorme serviço prestado pelo jornalismo de investigação e pelos lançadores
de alerta (whistleblowers), que assumem riscos consideráveis com as suas denúncias
de interesse público. Depois dos LuxLeaks, SwissLeaks ou OffshoreLeaks, os
Panamá Papers serão apenas mais um episódio num processo que se antecipa longo
e com muitas mais revelações, dada a informação disponível.
Seria importante
que a democracia europeia clarificasse de uma vez por todas o tratamento que é
devido a estes actores cívicos. As revelações sucessivas de fraude, evasão
fiscal e lavagem de dinheiro em larga escala despertaram um importante
reconhecimento público do papel destes lançadores de alerta em prol da
cidadania e da transparência.
Não podemos por
isso esquecer que ainda este mês, Antoine Deltour, ex-auditor na PwC e responsável
por muitas das revelações dos LuxLeaks, vai ser julgado sob acusação de roubo e
violação da legislação luxemburguesa de protecção do segredo profissional e
comercial, arriscando pena de prisão e multa.
Ao contrário dos Estados Unidos, onde os whistleblowers têm
um estatuto claro de proteção e apoio judicial, e mesmo uma compensação monetária
calculada em função do volume financeiro da fraude denunciada, nos países da
União Europeia (UE) encontramos de tudo: penas de prisão, exclusão do mercado
de trabalho e ruína financeira de alguns (provavelmente os mais sinceros), em
contraponto com outros, que enriqueceram com a venda da informação. A clarificação
do estatuto jurídico e do interesse público destas denúncias tem de ser
urgentemente estabilizada.
Os mecanismos agora revelados nos Panama Papers são
largamente conhecidos, e não constituem por isso uma surpresa. O que nos pode
surpreender é a escala astronómica deste negócio a par da identidade das
personalidades públicas e com responsabilidades que estão envolvidas. Mas estas
revelações, que se referem apenas a uma única empresa de um pequeno país, não são
mais do que a ponta de um enorme iceberg. Quantos mais Panama Papers haverá?
É inegável que, no seguimento da crise financeira, tem
havido alguns progressos no combate à fraude e evasão fiscal. Os países do G20
(as economias mais desenvolvidas e as principais emergentes) encarregaram a
OCDE de definir os princípios de transparência, incluindo para os paraísos
fiscais, a aplicar à escala global.
Este trabalho é importante e meritório, mesmo se as
directrizes da OCDE, além de frouxas, são apenas recomendações não
vinculativas.
O argumento de que este problema requer uma resposta
global tem indiscutivelmente alguma valia. Mas, nesse contexto, deverá a UE
liderar, ou esperar ser liderada?
Na verdade, a UE, tanto pelo seu grau de integração, como
pelos valores que defende, não pode remeter-se a uma espera passiva de um hipotético
consenso mundial.
Para ser credível perante os seus próprios cidadãos, a
União tem de consensualizar e implementar internamente os princípios pelos
quais se rege. Cabe-lhe seguidamente assumir o papel - provavelmente com os
Estados Unidos (e saúde-se a propósito as recentes declarações de Obama a
respeito dos Panama Papers) - absolutamente fundamental de contribuir para a
construção de uma "nova ordem mundial" em matéria de fiscalidade.
A dificuldade na construção desta agenda europeia é evidente:
em 2011-2012 os Socialistas no Parlamento Europeu (PE) desenvolveram uma
campanha pedindo o "fim dos paraísos fiscais”. A maioria parlamentar de
direita resistiu, com o eterno argumento de que se o combate aos circuitos de
fraude e evasão fiscal não for assumido à escala global, as empresas europeias
ficarão em desvantagem face às concorrentes. Não é estranho a esta atitude o
facto de alguns paraísos fiscais estarem exatamente dentro da própria União.
Mesmo assim, e graças à pressão da opinião pública,
resultante em particular dos LuxLeaks, tem havido avanços.
O relatório de que fui co-autora na comissão especial do
PE - TAXE - para investigar os acordos fiscais preferenciais (tax rulings)
oferecidos por membros da UE às multinacionais para lhes permitir transferir
rendimento tributável para países com menores taxas de imposto, e que foi
aprovado por esmagadora maioria do PE, elenca com grande precisão as medidas
que são necessárias ao nível europeu. Uma
delas é, precisamente, tornar ilegais os paraísos fiscais - o que inclui antes
de mais aqueles que existem no interior da UE - e aplicar sanções a quem os
utiliza.
A Comissão Europeia (CE), sob a liderança do comissário
socialista francês Pierre Moscovici, tem-se mostrado bem mais voluntarista do
que era habitual, apresentando propostas legislativas ambiciosas para
introduzir maior transparência na fiscalidade das empresas e reduzir as
possibilidades de recurso a paraísos fiscais: tributação de lucros onde a
actividade económica é realizada, obrigação de reporte - público - das
informações que permitam perceber em que países cada empresa realiza lucros e
paga impostos, e harmonização da base tributável do imposto sobre os lucros
para acabar com a actual concorrência fiscal agressiva entre países que
partilham um mercado interno e uma moeda única.
Estas e outras iniciativas esbarram no entanto contra
fortes resistências no Conselho de Ministros da UE (onde os Governos estão
representados). E como as decisões europeias em matéria de fiscalidade sobre as
empresas estão sujeitas à regra da unanimidade, basta a objecção de um país
para bloquear a decisão, o que é frequente da parte dos Estados que têm regimes
especiais a defender.
O que se espera, agora, na sequência das revelações dos
Panama Papers? No essencial, que a pressão pública dos cidadãos e da imprensa
sobre os respetivos Governos seja suficientemente forte para os convencer a
aceitar um salto qualitativo na forma como abordam as questões fiscais. É
preciso que os Governos não caiam na tentação de bloquear a legislação
essencial em nome de uma interpretação egoísta do respetivo "interesse
nacional" e, mais importante ainda, que não cedam à pressão indireta (ou
direta) dos poderosos atores que beneficiam da actual opacidade.
É preciso também que a CE
continue o seu voluntarismo no combate à fraude e evasão fiscal, e que proceda, em paralelo, a uma análise detalhada da eficácia da
legislação já existente na UE e da forma como está a ser aplicada pelos Estados
membros e que avance com propostas para colmatar eventuais lacunas.
Esperemos que as revelações dos Panama Papers sejam o
catalisador de um sobressalto de consciência por parte dos Estados membros que
os leve a aceitar um salto qualitativo da UE em matéria fiscal.
Para isso, é preciso que
a Comissão e o Parlamento consigam limitar os interesses nacionalistas no
Conselho para que a UE possa desempenhar o papel na cena mundial a que está obrigada
pela sua história e pelo esforço que está neste momento a ser pedido aos
cidadãos e às PMEs, os principais geradores das receitas fiscais dos Estados.
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